O projeto EQUALS4COVID19 tem organizado, ao longo dos últimos meses, grupos focais com profissionais de saúde. O objetivo é recolher as suas perceções e experiências em torno dos efeitos da pandemia na saúde mental e no bem-estar da população imigrante em Portugal, bem como aferir o impacto deste evento global no desempenho do seu trabalho com estas comunidades.
Após um alargado período em que se auscultaram imigrantes brasileiros e cabo-verdianos residentes em Portugal – os principais alvos deste projeto – através de um inquérito com recolha de dados através de questionário online e entrevistas individuais, foi a vez de ouvir os prestadores de cuidados de saúde. Violeta Alarcão, investigadora integrada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE e do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (ISAMB-FMUL), e coordenadora deste projeto, refere que, perante situações de crise, os grupos mais vulneráveis e marginalizados tendem a enfrentar dificuldades acrescidas, sendo por isso fundamental compreender que fatores, durante a pandemia, agravaram as iniquidades no acesso à saúde. Para tal, em debate com os participantes, procurou-se aferir o que observaram em relação à saúde mental e ao bem-estar psicológico destas comunidades. Nomeadamente, manifestações de ansiedade, depressão e comportamentos reveladores de mal-estar psicológico. Ao mesmo tempo, tentou-se avaliar o impacto da pandemia para os próprios profissionais de saúde no exercício das suas funções.
Na preparação desta iniciativa, foi feita uma ampla divulgação através de vários agrupamentos de Centros de Saúde do país, com o objetivo de recrutar um leque variado de profissionais. Foi a região da Grande Lisboa que maioritariamente respondeu ao apelo, tendo sido possível reunir profissionais com diferentes perfis e experiências diversas na prestação de cuidados de saúde à população imigrante.
Sob a moderação de Osvaldo Santos, investigador e coordenador do EnviHeb Lab do ISAMB-FMUL, os grupos focais, realizados em formato online, foram lançados entre junho e julho com um pleno de participações femininas. Reuniram-se profissionais de enfermagem, especialistas em medicina geral e familiar, médicas de saúde pública e técnicas de saúde ambiental, quer trabalhadoras em Centros de Saúde, quer em meio hospitalar.
A diversidade destes grupos de discussão permitiu abordar a equidade em saúde à luz de diferentes perspetivas. Foi possível determinar, por exemplo, que as situações de pobreza e de precariedade laboral comummente associadas a estas comunidades, forçaram muitas pessoas infetadas a continuar a trabalhar, por receio de despedimento. Naturalmente, tal contribuiu para o aumento dos números de contágio. Trata-se de um problema de saúde pública com óbvias repercussões na saúde mental e no bem-estar destas pessoas. Ainda que o fenómeno não seja exclusivo da comunidade imigrante, ganha especial relevo neste contexto, devido à maior precariedade.
Outro tema amplamente falado foi a resistência generalizada, entre a população imigrante não regularizada, em procurar assistência médica. Quem está em situação de permanência irregular no país, não consta do Serviço Nacional de Saúde nem tem médico de família. A clandestinidade leva ao receio da identificação e consequente denúncia através dos serviços de saúde. Muitos imigrantes desconhecem que, em Portugal, qualquer cidadão tem direito a ser assistido num Centro de Saúde ou num Hospital (em caso de urgência), independentemente da sua situação no país, sem que tal implique uma delação. Uma vez mais, em situação de doença, o medo obstaculiza a procura de ajuda, redundando no défice de cuidados.
Ademais, para algumas pessoas imigrantes, a permanência em Portugal é transitória e encarada como um ponto de passagem para o destino final. Ora, as restrições à mobilidade impostas pelo contexto pandémico vieram obrigar estas pessoas a permanecer mais tempo do que o desejado em território nacional, sem a salvaguarda da regularização do acesso à saúde.
Todos estes cenários dificultam ainda mais a prestação de cuidados àqueles cujas condições de vida são já mais duras. E, de facto, a acessibilidade em saúde é um ponto sensível. Não raras vezes, surgem relatos de situações de tensão e de comportamentos emocionais, geradores de conflitualidade, alegadamente desencadeados pela perceção, por imigrantes, de atitudes discriminatórias de que são alvo. Procurando perceber se as contingências da pandemia vieram agravar estas ocorrências, registou-se que, aos olhos dos profissionais de saúde, estas reclamações nem sempre são exageradas. Para tal, poderão contribuir fatores como as dificuldades de comunicação e a falta de preparação ou de sensibilidade para lidar com a diferença, logo desde o momento da admissão.
Perante a existência de muitos imigrantes com dificuldade em aceder ao Serviço Nacional de Saúde e de muitos casos de infetados em situação irregular, foi necessário tomar medidas que facilitassem a testagem, o confinamento, o tratamento, bem como a vacinação destas pessoas. Assim, para os imigrantes sem número de utente, procedeu-se à atribuição do mesmo em caso de infeção por COVID-19. Esta integração no SNS permanece à posteriori, facilitando o acesso a cuidados médicos em situações futuras. Este é um dos exemplos referidos como uma das mudanças mais positivas ocorridas durante a pandemia, assegurando a admissão dos utentes nos serviços de saúde.
Naturalmente, com a pandemia de COVID-19, também os profissionais de saúde viram as suas dinâmicas de trabalho alteradas, com a obrigatoriedade de reformulação das rotinas de prestação de cuidados a toda a população. Os participantes dos grupos focais referem sobretudo o impacto na capacidade de resposta, em consequência do repentino avolumar de trabalho, com efeitos na gestão das atividades regulares. Por exemplo, a necessidade de adiamento de exames clínicos, de consultas de especialidade, de cirurgias não urgentes, ou de consultas programadas de acompanhamento à obesidade, à diabetes, à hipertensão, ou de cessação tabágica, entre outras.
Por outro lado, também se notou que os pacientes resistiram mais a recorrer aos hospitais, quer por receio de contágio, quer devido à sobrelotação do sistema. As profissionais de saúde referiram, nos grupos focais, uma relação de causa-efeito entre o atual aparecimento nos hospitais de situações de doença em estado mais avançado, com a chegada tardia aos cuidados de saúde. Uma vez mais, neste caso, trata-se de uma realidade que afetou a população no seu todo.
Para atenuar os efeitos das restrições de acesso aos Centros de Saúde e aos hospitais, as tecnologias digitais revelaram-se um forte aliado, de acordo com as profissionais de saúde. A possibilidade da teleconsulta, por exemplo, é mais uma das práticas que se normalizou no período da pandemia e que deverá manter-se, com benefícios para os profissionais de saúde, na gestão do seu trabalho, e para os utentes, que têm acesso a um médico sem necessidade de deslocação. Na visão dos participantes, é mais um exemplo do que de bom foi feito.
As profissionais participantes, com os seus perfis diferenciados, contribuíram para o debate em torno do impacto da pandemia de COVID-19 na saúde e bem-estar das populações imigrantes em Portugal, partilhando experiências do desempenho das suas funções. Osvaldo Santos, que moderou o debate, destaca a importância da sinalização de alguns determinantes de iniquidade em saúde que certamente tiveram reflexo durante a pandemia. Entre os mais importantes estão a precariedade laboral e a condição de imigração não resolvida, já aqui referidas, mas também o analfabetismo e o as condições no local de residência:
“De acordo com a perspetiva de muitos profissionais de saúde, o analfabetismo dificulta o apelo à autoproteção, ao autocuidado e à vacinação. O processo de vacinação foi especialmente complicado entre a comunidade imigrante, porque a mensagem da prevenção é difícil de passar. Ou seja, muitas destas pessoas questionam o porquê da necessidade de uma vacina, se não estão doentes” – conclui o investigador, com base nos relatos recolhidos. Por outro lado, o número de habitantes no local de residência, que é tendencialmente elevado, impossibilita o isolamento, colocando em risco de contágio os demais coabitantes. “Esta circunstância, sobretudo quando há alguém mais velho e vulnerável, poderá potenciar a ansiedade e a depressão” – acrescenta ser também uma ideia-chave que resultou dos grupos focais realizados.
Num debate que tinha a pandemia como pano de fundo, com todas as alterações que provocou no modo de vida de todos nós, seria impossível manter o foco exclusivamente nos seus efeitos sobre a saúde mental e em relação à comunidade imigrante (brasileira e cabo-verdiana). Muitas vezes, as conversas divergiram para a assistência ao nível da saúde física e para a sociedade portuguesa, de forma transversal. Além disso, houve mais referência a determinantes de saúde mental do que a problemas de saúde mental em concreto. Depreende-se que, neste aspeto, as perceções dos profissionais de saúde são mais impressionísticas do que baseadas em dados conhecidos pelos mesmos. Parece haver também uma perceção de equivalência entre sintomas e eventual patologia: em situação de consulta, se um doente chora ou se mostra exaltado, esse comportamento é muitas vezes considerado um sintoma de depressão. Contudo, entre as participantes, ninguém referiu ter, no local de trabalho, alguém ou algum procedimento capaz de diagnosticar e/ou sinalizar reais situações de depressão ou outros problemas de saúde mental.
Um dos pontos-chave do projeto EQUALS4COVID19 é a produção de recomendações para as políticas públicas de integração dos imigrantes e para as boas práticas de capacitação dos profissionais de saúde. Os aspetos referidos nos grupos focais lançam as bases para uma reflexão que deverá ser feita sobre as formas de dirimir estas iniquidades, em particular na saúde mental. Tendo em conta o exposto, podem apontar-se alguns exemplos. Osvaldo Santos refere a pertinência da aplicação de instrumentos de medição de casos de psicopatologia nas consultas médicas, com encaminhamento dos casos identificados para a especialidade: “Em contexto de crise, poderia fazer sentido que os médicos, ou os enfermeiros, colocassem algumas perguntas de rastreio de problemas de saúde mental mais graves às pessoas que se apresentassem mais debilitadas. Existem escalas para esse fim, e são eficazes.” Contudo, ressalva: “Claro que isso implicaria mais meios humanos no terreno dedicados à saúde mental, e essa é, reconhecidamente, uma das principais dificuldades e lacunas do nosso serviço nacional de saúde.”
Outro aspeto crucial é o estabelecimento de uma comunicação eficaz, quando estão em causa questões de saúde pública. Tendo em conta os números de analfabetismo e as dificuldades no acesso à informação, importa encontrar estratégias de apelo ao autocuidado físico e mental, à vacinação e de promoção da literacia em saúde. Para fazer circular estas mensagens através dos canais frequentados por estas comunidades, é necessário desenvolver um constante trabalho de proximidade.
Finda a auscultação dos profissionais de saúde, segue-se a realização de grupos focais com imigrantes de nacionalidade brasileira e cabo-verdiana. Desta vez, procurar-se-á compreender de que modo a pandemia alterou as suas vidas, que efeitos teve ao nível da saúde mental e do bem-estar, e de que modo decorreu o acesso à prestação de cuidados de saúde.
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